segunda-feira, 26 de julho de 2010

ROTEIRO CONCLUIDO, TRECHO DO MESMO E REFLEXÕES A PARTIR DE DALGALARRONDO


“Rigorosamente, todas estas noticias são desnecessárias para a compreensão da minha aventura; mas é um modo de ir dizendo alguma coisa, antes de entrar em matéria, para a qual não acho porta grande nem pequena; o melhor é afrouxar a rédea à pena, e ela que vá andando, até achar a entrada. Há de haver alguma; tudo depende das circunstancias, regras que tanto serve para o estilo como para a vida; palavra puxa palavra, uma idéia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, uma revolução; alguns dizem mesmo que assim é que a natureza compôs as suas espécies.”

(Machado de Assis, Primas Sapucaia, Históriaas sem data, 1884)

Terminei de escrever Melissa. Na verdade, terminei dia 20. Hoje, digamos, foi a arte final. Iniciei em 14 de Abril. No meio do caminho, universidade, Drácula, aulas em escolas diversas, namoro, amigos, casa. Um inferno, a vida. Mas estou satisfeito com o resultado: sete páginas bem equilibradas, prontas para ganhar vida nos palcos. Agora sim começa do desafio. Ouço Cocteau Twins enquanto escrevo, preparando-me, na verdade, para criar a trilha sonora a partir da música pop inglesa dos anos 80, do rock nacional, de efeitos diversos e outras fontes sonoras incidentais.

A leitura do livro de Dalgalarrondo (Psicopatologia e Semiologia dos transtornos mentais). Em certa passagem do livro, ele cita:

“(...) merece uma palavra o uso que fiz, um tanto abusivo, de poemas, citações e trechos literários. O lugar estrategicamente fundamental da arte como fonte de conhecimento psicopatológico já foi vislumbrado e bem descrito por Freud:



‘Poetas e romancistas são nossos preciosos aliados, e seu testemunho deve ser altamente estimulado, pois eles conhecem muitas coisas entre o céu e a terra com que nossa sabedoria escolar não poderia ainda sonhar. Nossos mestres conhecem a psique porque se abeberam em fontes que nós, homens comuns, ainda não tornamos acessíveis à ciência” (O delírio e o sonho na Gradiva de Jensen, 1906)’



“Assim, aproprio-me da formulação freudiana, reconhecendo que o artista percebe antes e mais profundamente do que o cientista; este último organiza melhor, cria sistemas, hierarquias, enfim, ‘arma’ uma lógica para natureza. Mas é do grande artista o privilégio da percepção mais fina, mais profunda e contundente, daquilo que se passa no interior do homem, suas misérias e grandezas.” (pág. XIII)

Cito-o aqui por dois motivos. Primeiro, porque estou adorando o livro: escrito por um cara que é doutor em medicina pela universidade de Heidelberg, sua literatura é simples e acessível a todos os níveis mentais que se proponham a conhecer melhor o universo mental do ser humano. O segundo motivo é que meu dilema artístico encontra espelho na frase acima: o cientista organiza melhor e cria sistemas enquanto o artista tem a percepção apurada do ser. Ora, por que não termos domínio sobre os sistemas científicos associados à nossa percepção apurada? É isto que busco. Acredito que esta era a estrada de Stanislavsky que sigo há anos. Para mim, o ator tem algo de extraordinário, um espírito não apenas afinado, criativo e criador; mas também um faro apurado para investigações do corpo, da alma e da mente, seja no social ou no psicológico. Vários caminhos para se aprofundar na alma e interpretar uma vida. Requer paciência, compreensão e crescimento pessoal. Uma arte marcial honrada. Um kung Fu que deixa o mestre melhor conforme ele envelhece e aprende. Algo maior que a própria vida, interrompido apenas pela morte. A Arte, enfim.

Bom, é hora de dormir. Deixo a vocês a indicação ao livro de Dalgalarrondo, que é fantástico. E também deixo trecho do roteiro de Melissa, para que vocês possam dar os primeiros passos da criação artísticas do espetáculo comigo. Boa leitura a todos!

M E L I S S A  H A M L E T : A  Q U E S T Ã O  S H A K E S P E A R E
“Hamlet” escrito por Shakespeare. Melissa Hamlet criado por Claudemir Santos.



CENA 01 – TOCANDO A FLAUTA
(BLACKOUT)
MELISSA (gravação com eco)
Pára, ilusão! Se tens o dom da voz, fala comigo! Se eu posso fazer algo que traga paz à sua alma e salvação para a minha, fala comigo! Se sabes de algum mal que desgraçará tua pátria e pode ser evitado, me fala! Se escondeu algum tesouro em vida e ele te tortura após a morte, me fala! (Um galo canta.) Pára e fala! Pára e fala!...
(Música. Luz. BELLOTO entra. Observa objetos na mesa. Pega a flauta e a toca).



BELLOTO
Você quer tocar essa flauta pra mim?  Não sabes? Ah, por favor! É tão fácil quanto mentir: É só tampar estes buracos com as pontas dos dedos e soprar. Você não sabe? E o que você acha que eu sou, querendo arrancar da minha alma minhas verdades mais graves e meus segredos mais agudos? Achas que sou mais fácil de tocar do que a uma flauta?
Eu sei o que você deseja. Eu sei o que você quer ouvir. Mas pra quê você quer saber? Você acha que ouvir falar sobre uma pessoa por alguns minutos vai te dar a compreensão total de sua existência? Não vai. Sinto muito, mas não vai. Uma peça de teatro, uma música, um livro ou um filme não podem definir uma vida. Mas não se preocupe: você não perdeu viagem. Eu preciso mesmo falar sobre Melissa. Eu preciso me sentir vivo!
(BLACKOUT. Dois faróis acesos. Um carro na noite. Dialogo gravado).



BELLOTO
Radial Leste, sentido centro. Melissas dirige pensando na morte dentro da vida. Pensando em Shakespeare na sua carreira. Ela acende um Marlboro vermelho.
MELISSA
Vivemos em tempos estranhos, Belloto.

BELLOTO
Ela diz.
MELISSA
Mas isto não importa, querido. O que importa realmente é que eu passe no teste. E eu vou passar, sabe por que? Porque estou preparada, e estar preparada é tudo!
(O carro pára. BLACKOUT. Radio desligado. Portas do carro se fechando).

CENA 02 – A AUDIÇÃO
(Sons de pessoas conversando. Luz. Diretor entra).



DIRETOR
Bem vindos aos testes para Hamlet. Quem representar o rei será bem vindo; o cavaleiro usará sua espada; o amante não irá suspirar sem motivo; o fresco terá paz; o bobo fará rir; as mulheres terão suas falas e o verso não será mutilado. Comecemos.

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